As tecnologias digitais, hoje em dia, estão não apenas em toda parte mas também e principalmente cada vez mais presentes nas organizações – sejam empresas privadas ou organismos públicos. Por exemplo, se dúvidas ainda existissem, a pandemia veio demonstrar na prática que grande parte das pessoas, com mais ou menos dificuldades, de facto já pode trabalhar quase normalmente a partir de casa.
Mas o trabalho remoto (como se diz agora) não é muito mais do que uma experiência forçada em grande escala que tem tido uma enorme visibilidade. As tecnologias digitais estão a ter um impacto enorme nas organizações que quase sempre mal se nota, dada a sua integração com os processos e as pessoas existentes. Um bom exemplo é, sem dúvida, a simplicidade com que atualmente podemos encomendar e pagar uma refeição no telemóvel.
No entanto, o maior impacto das tecnologias digitais nas organizações ainda está para vir… basta pensar, por exemplo, que já existe tecnologia para perceber linguagem natural e responder também com linguagem natural. Tudo em tempo real. Não está por isso muito longe o dia em que seremos atendidos por chatbots quando quisermos, por exemplo, marcar uma consulta médica por telefone.
Estes exemplos são tudo menos académicos. As organizações que não adotarem as novas tecnologias digitais vão perder competitividade, a seguir ter prejuízos, e finalmente desaparecer… Os organismos públicos vão continuar a prestar serviços cada vez em menos quantidade, mais lentos, mais caros, e piores, prejudicando a economia e mesmo toda a sociedade. Ignorar as tecnologias não é opção.
Os mestres digitais são organizações que sabem tirar partido das novas tecnologias. Não de computadores, redes ou software, que qualquer organização pode comprar no mercado, cada vez mais sofisticados e por preços cada vez mais baratos. Ainda para mais agora que o software está a migrar para a nuvem, onde as economias de escala permitem oferecer serviços “chave na mão” por preços muito baixos ou mesmo gratuitos.
Para tirar partido das novas tecnologias digitais não basta investir em tecnologias. As organizações precisam alterar a sua forma de trabalhar! Essas alterações podem ser feitas na relação com o cliente, nas operações internas, ou mesmo no modelo de negócio. Mas investir em tecnologia para continuar a fazer o mesmo da mesma maneira tem pouco ou nenhum impacto na organização. Qualquer outra organização consegue facilmente fazer o mesmo com as mesmas tecnologias, de maneira que (no máximo) a organização apenas consegue acompanhar a evolução tecnológica do seu sector ao ritmo da média… Mas mesmo assim acaba por ficar para trás, pois esta evolução incremental não é sustentável durante muitos anos.
Só que para alterar a forma de trabalhar é preciso liderança! Não basta um diretor que seja nomeado responsável pela implementação de um novo sistema informático. Pior ainda quando o sistema é desenvolvido à medida para suportar a atual forma de trabalhar – como infelizmente acontece quase sempre nos “projetos informáticos” dos organismos públicos.
A liderança pode ser exercida por um gestor de topo, mas também pode ser concretizada por uma nova unidade de negócio, uma comissão ou mesmo um diretor – mas que tenha competências, vontade, dinheiro e poder para tirar partido das novas tecnologias digitais para alterar a forma de trabalhar da organização.
A relação com os clientes é uma das três categorias de alterações à forma de trabalhar, apoiada pelas tecnologias digitais, com grande impacto nas organizações. Estas alterações podem ser, por exemplo, aumentar o foco no cliente, envolver ainda mais o cliente, recolher e utilizar mais informação sobre os clientes, e/ou articular melhor as relações presenciais (por exemplo, nas lojas ou balcões) com as relações digitais, por exemplo, nas redes sociais.
As tecnologias digitais permitem identificar mais facilmente as necessidades dos clientes, e depois fornecer produtos e serviços específicos para determinados segmentos. Por exemplo, hoje em dia é extremamente fácil e barato fazer anúncios no Facebook para determinados segmentos, incluindo idade, gênero e formação, e depois analisar as respostas a esses anúncios para avaliar quais funcionam melhor para cada segmento de mercado.
O envolvimento dos clientes também é bastante facilitado pelas tecnologias digitais. Por exemplo, a enorme maioria dos restaurantes em Portugal fornece um serviço que é praticamente igual seja a primeira ou a milésima vez que serve uma refeição aquele cliente. Mas hoje em dia é relativamente fácil detectar a entrada de um cliente “habitual” (seja através de wifi ou Bluetooth) para fornecer um serviço mais personalizado, e portanto de maior valor acrescentado. Já nem falo dos pagamentos, cuja grande maioria ainda são feitos com cartão multibanco e código manual (operação que demora pelo menos um minuto) ou mesmo em notas e moedas – uma tecnologia com milhares de anos!
Tirar partido da informação dos clientes é outra grande oportunidade, ainda para mais quando a informação é basicamente a “matéria prima” das tecnologias digitais. Hoje em dia as organizações recolhem imensa informação sobre os seus clientes que pode e deve ser analisada para oferecer um serviço melhor e/ou mais barato. Por exemplo, através da análise aos custos de todas as atividades é possível calcular exatamente quanto custou (individualmente) cada produto ou serviço.
Finalmente, as várias interfaces da organização com os seus clientes devem ser integradas, para que o cliente não sinta que está a interagir com várias organizações. Por exemplo, um anúncio visto no Facebook pode levar a uma compra no website, uma recolha do produto na loja, e mais tarde uma reclamação por telefone. O contrário também deve ser possível: ao visitar uma loja pode ser sugerido ao cliente que faça uma visita ao website ou mesmo um “like” em tempo real na página do Facebook. Não pode acontecer, como acontece frequentemente, que o website não seja apenas mais uma loja virtual mas antes tenha vida própria.
As operações internas são aquela parte das organizações que os clientes desconhecem, mas que também são fundamentais. Ao contrário da relação com os clientes, os principais objetivos são tirar partido das tecnologias digitais para aumentar a eficácia e/ou a eficiência – em particular para aumentar a qualidade (dos produtos ou serviços) e/ou reduzir custos.
As oportunidades nas operações internas podem ser apresentadas através de três paradoxos. Por exemplo, na era pré-digital, para garantir a qualidade era muito importante que todos os empregados trabalhassem da mesma maneira. Mas agora, na era digital, é muito fácil (e barato) apoiar, monitorar e controlar a forma como trabalham os empregados. Por isso faz sentido permitir que os empregados tenham liberdade de trabalhar de formas diferentes, quem sabe até melhor que aquela patrocinada pela organização.
Outro paradoxo é baseado na forma como a organização controla os seus empregados, que são normalmente o recurso mais caro (e mais difícil de gerir) das organizações. Tradicionalmente esse controlo é exercido através de múltiplas camadas de gestores, mas agora com as tecnologias digitais é possível implementar técnicas modernas de gestão (de processos, projetos ou tarefas, em particular ágeis como scrum ou kanban) utilizadas diretamente pelos empregados sem necessidade de tantos gestores.
Finalmente, o terceiro e último paradoxo é designado (à falta de uma boa palavra em português) “unleashing” em inglês. Como a pandemia veio confirmar, embora talvez de forma um bocado bruta e abrupta, de facto a enorme maioria das pessoas pode trabalhar em qualquer lado – inclusive em casa. Antes da pandemia (quase) ninguém discordava (com algumas honrosas excepções, incluindo o mestrado online MISE do qual sou coordenador) da necessidade de juntar os empregados fisicamente num escritório, e obrigar uma grande parte deles a passar metade do tempo em reuniões. Mas (pelos vistos) a produtividade não diminui (e em alguns casos até aumenta) com o trabalho à distância. Já agora, se localização deixou de ser importante com as tecnologias digitais, porque não abolir também a restrição tempo e deixar as pessoas trabalharem quando lhes apetece? Fica a sugestão!
O último grande tipo de alterações na forma de trabalhar suportado pelas tecnologias digitais é muito mais ambicioso, pois obriga os incumbentes (que é como são designadas as empresas que existem) a alterar a sua maneira de ganhar dinheiro. Caso sejam organismos públicos, a prestar muito mais e melhores serviços. O problema é que alterar um modelo de negócio, apesar de ter um retorno potencialmente muito elevado, é extremamente difícil.
Por exemplo, uma empresa de automóveis como a Volkswagen fabrica carros a combustão (gasolina ou gasóleo) há muitas dezenas de anos. E esses carros têm tido cada vez mais qualidade e mais tecnologia, e são cada vez mais potentes, mais bonitos e por aí adiante. Por outro lado, a empresa vende milhões de carros por ano, e por isso tem enormes economias de escala. Tem ainda uma marca fortíssima, conhecida e reconhecida. Nada de mal pode acontecer!
Mas um dia, nos Estados Unidos, surge um empreendedor chamado Elon Musk que começa a vender carros eléctricos com a marca Tesla. Ao princípio ninguém o levou muito a sério, mas este ano tornou-se a empresa de automóveis mais valiosa do mundo. Para a Volkswagen não parece um problema. A empresa tem bilhões no banco, milhares de engenheiros, uma rede de fábricas e distribuidores no mundo inteiro, e ainda a tal marca fortíssima. Como se não bastasse, a tecnologia dos carros eléctricos é muito mais simples que a tecnologia dos carros a combustão. Melhor: as baterias (o único componente não trivial) podem ser compradas a terceiros, por preços cada vez mais baratos.
A verdade é que a Volkswagen vendeu apenas 80 mil carros eléctricos em 2019, quando a Tesla vendeu 367 mil. Também circulam rumores que a Volkswagen está com imensos problemas no ID.3 (o seu principal modelo eléctrico) por causa do software. Afinal, aquilo que parecia fácil (derrotar a Tesla) está a ser bastante difícil… E esta alteração ao modelo de negócio nem sequer é profunda! Muito muito mais difícil vai ser desenvolver (principalmente para uma empresa com dificuldades na área do software) e vender (ou provavelmente alugar) carros autónomos!
Este é apenas um exemplo de alterações dos modelos de negócio ao nível do sector, onde todas as empresas basicamente são forçadas a acompanhar… Existem outros tipos de alterações dos modelos de negócio, como substituir produtos por serviços (como aconteceu, por exemplo, no software ou mesmo na música), mudar a cadeia de valor (por exemplo, vender diretamente ao consumidor pela internet) ou alterar a proposta de valor (por exemplo, vender seguros para eventos).
As tecnologias digitais já são fundamentais para as organizações, mas a sua importância vai ser cada vez maior e de forma exponencial. Basta imaginar o impacto da inteligência artificial em áreas como a saúde, por exemplo para detectar doenças e até mesmo propor tratamentos. Neste momento estou envolvido num projeto para implementar consultas remotas (como agora se diz) e desenvolvemos o sistema em poucas semanas, quando há pouco tempo atrás demorava anos! Este sistema já está preparado para recolher dados sobre os doentes, e brevemente vamos começar a analisar esses dados…. O futuro é cada vez mais próximo!
Na educação já temos ensino a distância pela internet há 30 anos. Nos últimos 5 anos apareceram os cursos curtos online baseados em vídeos. Neste momento já existem dezenas de mestrados online de universidades conceituadas, a preços muito inferiores aos mestrados tradicionais. Em Setembro um jovem de 17 anos poderá escolher entre estudar no Técnico ou estudar no MIT – sem sair de casa!
O trabalho remoto também veio para ficar, e vai aumentar imenso nos próximos anos. Toda a gente já percebeu que grande parte dos empregos não exigem uma presença constante no escritório – para cerca de metade das pessoas basta um dia por semana, ou menos! A tecnologia vai continuar a evoluir (por exemplo, reuniões a distância com hologramas) e facilitar cada vez mais o trabalho remoto. A procura por casas à volta de Lisboa já aumentou!
Neste contexto quem perceber como utilizar as tecnologias digitais para alterar a forma de trabalhar das organizações tem uma vantagem competitiva no mercado de trabalho. E vice-versa, quem não perceber terá o seu futuro profissional cada vez mais negro – principalmente em tempos de recessão econômica com salários a descer e um nível elevado de desemprego. Não é preciso conhecer as tecnologias, que são muitas, complexas, e cada vez mais sofisticadas. É sim preciso conhecer casos de estudo de aplicação prática das tecnologias para perceber como podem ser utilizadas nas organizações para melhorar a relação com os clientes, aumentar a eficiência e eficácia das operações internas, e/ou alterar o modelo de negócio.