O Euro Digital é um projeto do Banco Central Europeu que visa criar uma massa monetária tokenizada em Euro, ou seja, uma criptomoeda cunhada pelo Banco Central. É, portanto, uma CBDC (Central Bank Digital Currency).
Desde o tempo em que a Meta, na altura Facebook, tentou criar a Libra, uma criptomoeda estável e indexada ao Euro, ao Dólar Americano e ao Yuan, as CBDC passaram a estar na ordem do dia. A maioria dos bancos centrais começou então estudar soluções, tendo alguns já anunciado os seus planos na criação das suas CBDC. A China adiantou-se e já colocou o Yuan Digital em circulação há dois anos.
Em julho de 2021, O BCE iniciou um projeto de estudo sobre o que deveria ser o Euro Digital, envolvendo os bancos centrais da zona euro, a Comissão Europeia, e um conjunto alargado de entidades, como a academia, consultores, empresas e até consumidores. Entretanto, no verão de 2023, a Comissão Europeia propôs um texto para um regulamento a aplicar ao Euro Digital, o qual ainda tem de passar pelo BCE, e em última análise vir a ser aprovado pelo parlamento antes de ser adotado. Não obstante, é um texto que já avança com o que se espera venha a ser este novo tipo de moeda. Adicionalmente, em janeiro de 2024, o BCE veio dar nota do estado atual do desenho das diversas funcionalidades do Euro Digital, o que permite vislumbrar o que aí virá, até porque a solução vislumbrada assenta que nem uma luva no regulamento proposto pela Comissão Europeia.
Na zona euro, a grande maioria dos pagamentos de baixo valor nos pontos de venda são realizados em numerário porque, pelos vistos, muitas situações há em que a conveniência dos pagamentos eletrónicos não é suficientemente apelativa para os consumidores. A segunda diretiva de pagamentos, em execução desde 2018 (PSD2), tentou corrigir a situação, mas sem sucesso, e a próxima versão da lei, desta vez sob forma de regulamento (PSD3), parece seguir a mesma linha. Pois é aqui que entra o Euro Digital como potencial solução. A ideia é realizar os pagamentos nos pontos de venda de forma alternativa ao numerário, às contas bancárias, e aos respetivos fornecedores dos processos de compensação. Neste caso, as trocas de valor serão feitas com recurso a uma massa monetária desmaterializada sob égide do Banco Central Europeu. Naturalmente, o BCE conta com toda a atual infraestrutura de serviços de pagamentos para dar sequência às transações.
Os objetivos da medida são muito positivos pois aumentam extraordinariamente a conveniência dos processos pagamentos para consumidores e fornecedores. É que, em vez de se recorrer ao numerário, aos cartões de débito, ou a um qualquer mecanismo que envolva smartphones que passe pelos tradicionais TPA (terminais de pagamento automático), basta usar as Wallet com capacidade para manipular token criptográficos. Ou seja, as transações passam a ser tão simples quanto a leitura de um QR Code. É um aumento de conveniência próximo do que a China já tem com as suas Super App (WeChat e Alipay). Então porque é que é inútil?
Convém ter presente que o numerário é da responsabilidade dos bancos centrais, e a sua substituição por uma forma de pagamento mais conveniente só devia trazer vantagens. Porém, esta proposta do Euro Digital refere explicitamente que não se trata de dinheiro programável, mas de mais um canal de pagamento, retirando-lhe as vantagens que a tokenização do dinheiro poderia aportar à economia.
O Euro Digital pretende, portanto, tentar resolver apenas o que não foi conseguido pela diretiva PSD2 na zona euro. O problema é que segue mesma linha desta diretiva pelo que é legítimo duvidar do seu sucesso. Por exemplo, para que esta forma de pagamento possa ser inclusiva, é preciso garantir que os comerciantes estão disponíveis para a adotar. A proposta prevê que sejam os próprios bancos centrais de cada país a fornecer o acesso a uma versão base da necessária Wallet, e mesmo assim ainda é preciso pensar na integração com a tecnologia de faturação nos pontos de venda.
Estamos a perder a oportunidade de ter acesso a uma massa monetária que suporte verdadeiramente a tokenização da economia, pois é disso que trata a web3. Felizmente, há alternativas em curso, tal como a aplicação do Título 4 do regulamento MiCA (MArkets in Crypto Assets) a partir de junho deste ano e que trata de pagamentos com Stablecoin em euro na mão da banca de retalho.
A atual proposta do euro digital não vem, portanto, criar valor em nenhuma das frentes, e é por isso que é inútil.
Paulo Cardoso do Amaral
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